Lâmpada Vermelha

Esvaziei as três gavetas do criado-mudo no chão. De vez em quando tenho esses rompantes, mesmo tarde da noite. E não consigo dormir sem arrumar tudo. Minha mãe dizia (recordo ainda vagamente disso) que puxei esse lado freak de meu avô. Eu era pequeno demais para lembrar, mas penso nela toda vez que resolvo faxinar.

Relógios parados no tempo, pares de óculos, um deles com a haste torta, dois passaportes vencidos, Tiger Balm, camisinhas, fita métrica, celulares Nokia com fones e as borrachinhas ressecadas, plaquinha pra bruxismo abandonada e ressecada, creme fotos de alguns eventos que participei, agenda de telefone, uma lâmpada vermelha. Uma lâm-pa-da ver-me-lha. E uma infinidade de coisas que eu nem sabia que estavam ali, e de outras que não serviam para nada.
Não sei por que guardamos tanta coisa. Não sei por que fazemos isso com tudo.
A gente insiste em manter em nossas vidas coisas que não têm mais o menor sentido e com isso não damos espaço para que as novas cheguem e ocupem o lugar.
Não tem lugar. Nos cercamos do velho, do conhecido, do confortável.
Ninguém mexe. Ninguém tasca.
Pra que mexer, pra que ter trabalho. Está tudo tão bom assim. Mesmo que não esteja. A gente se afunda em autopiedade, mágoa e rancor. Esfrega os olhos, toma um café e continua engolindo o de sempre, vivendo uma vida que parou no tempo e no tédio. Fazemos isso com roupas, com amores fracassados, com trabalhos chatos, salários baixos, amigos desleais, com uma agenda de telefone velha. Olhamos para a lâmpada vermelha na gaveta do criado-mudo e deixamos que fique lá.
Está ruim assim, mas esse ruim eu já conheço. Ninguém mexe. Ninguém tasca. Não quero me incomodar com meus velhos incômodos. São incômodos, mas são velhos conhecidos e são meus. Sou feliz assim mesmo!
Mas a gente gosta daquela cebola gigante do Outback, onde janto, agora, uma vez por ano ou quando dá, uma vez por mês.
Cansei de antigos trabalhos guardados em fotos e vídeos, mas estou satisfeito só de reclamar.
Não gosto de gente acomodada. Gente que não que não se esforça para aprender alguma coisa nova, vai no automático. Nesta idade parece que já conheço todo mundo, todo mundo faz de conta que gosta de mim e eu faço de conta que não detesto todo mundo.
Para tudo. Não precisa ser assim. Não quero que seja assim. Incômodo poderia pinicar pra não deixar a gente se acomodar. A gente deveria fazer faxina de trabaho, faxina de redes sociais, faxina de amizades. Ninguém precisa de uma lâmpada vermelha ocupando espaço na gaveta. Ela acabou lá numa noite que eu quis dar um clima de "obscuro" no quarto. Coisa de filme retrô.
A gente muda. Ou é só abstinência de um bom calmante mesmo. Deve ser a maracug(j)ina.
Tem roupas que nunca mais quero usar, pessoas que tenho vergonha até de lembrar, amizades que eu trocaria por um saco de pipoca, trabalhos que parecem uma linha de produção japonesa de tão chatos. Uma lâmpada vermelha pode ser a luz que falte pra mostrar quando está tudo errado e que é hora de varrer toda a sujeira de debaixo do tapete para fora da porta e para longe da nossa vida.