Piscar de Olhos

Parei pra pensar. Não sei você, mas eu pisquei os olhos e lá se foi mais da metade do ano.

Meu deu um desânimo. Bateu a sensação de que estou me repetindo e que vou chegar ao final do ano cheio de "coisas não cumpridas".

Me dei conta que a lista de resoluções, planos e tarefas está dividida em ‘segunda, eu começo’, ‘depois das férias eu começo, e ‘talvez um dia’.

A gente se impõe tanta coisa que não faz nem o básico. E de repente os doze meses de um ano parecem durar nove.

Todos os dias as horas nos engolem. Olhamos no relógio e já são 11h, de repente o ponteiro bate 15h. Minutos depois e já são 18h45. Meu deus, não fiz nada ainda, tanta coisa me esperando.

Preciso de mais minutos nas minhas horas, mais horas nos meus dias, mais dias nos meus meses, mais meses nos meus anos.

Mais tempo na minha vida. Até que a gente percebe que o que falta mesmo é ter uma vida pra viver.

Não dá pra fazer mágica. Chega uma hora que é preciso ser realista até quando sonhamos. E talvez o que esteja errado seja o tamanho dos nossos desejos.

Fazemos uma lista interminável de metas e colocamos na cabeça que só assim finalmente poderemos descansar em paz.

Mas será que eu sou tão infeliz como sempre tento me convencer? Falta mesmo tanta coisa ou só entrei nesta centrífuga e deixei a vida sugar o que nem tenho pra dar?

Talvez a gente só esteja se tornando um estereótipo porque o mundo é mais condescendente com pessoas infelizes. A maioria à nossa volta convive melhor e é mais solidária se a vida alheia é mais miserável.

Experimente ser feliz todos os dias na frente das pessoas. Quase ninguém vai gostar. Você certamente sofrerá algum tipo de represália.

A gente faz mil planos, mas nunca colocamos limites, nem estabelecemos o que é necessidade e o que é supérfluo. Pense: o que eu realmente preciso mudar? Passamos muito tempo fazendo coisas que odiamos pra impressionar gente que não gostamos. Não adianta reclamar e continuar no piloto automático. Se a gente não começar a viver a vida que queremos, vamos continuar vivendo a vida que alguém pensou por nós: a chefe, a melhor amiga, a mulher da ACM, a nutricionista.

Você cai no conto do glúten e do laticínio, mas descobre que é muito mais feliz comendo pizza domingo à noite, no sofá. Detesta boxe, mas a mocinha da acadenia quer te convencer que muai thai é a pílula mágica do emagrecimento.

A melhor amiga só quer o seu bem, desde que você faça do jeito dela. Todos os chefes vão te elogiar, mas sempre pensando que você deveria agradecer por estar ali 12 horas por dia.

Parei de ler o horóscopo quando descobri que cheguei a um ponto de acreditar mais nele do que em mim.

Desde então, as coisas começaram a acontecer porque passei, finalmente, a viver minha vida entre um tropeço e outro, mas do meu jeito.

Tenho tentado não me fazer de vítima e acusar o universo de me boicotar.

Conheço gente que já desmarcou entrevista de trabalho, deixou de comprar eletrônicos ou fez seguro contra enchente porque estava escrito que naquele mês estava tudo do avesso.

Então, agora que agosto está terminando, chegou, resolvi diminuir a pressão.

Vou direcionar para o lado mais simples da vida que a gente esquece.

Quero dormir bem, acordar descansado, tomar café da manhã numa mesa bonita, cochilar sentado, almoçar de verdade – sem olhar o celular – todos os dias, tomar vinho nos jantares, ligar para meus irmãos para bater papo, planejar as férias, falar com Deus antes de dormir.

Parece pouco, mas é muito.

Do que adianta emagrecer cinco quilos, mas continuar trabalhando doze horas por dia?

Viver melhor e ser mais feliz não requer uma mudança tão radical quanto a gente pensa.

Vamos começar pelo básico, depois a gente complica. Mas só um pouco.

Talvez dessa forma, dezembro chegue mais leve e estejamos mais satisfeitos com a vida que damos conta de ter.

Lâmpada Vermelha

Esvaziei as três gavetas do criado-mudo no chão. De vez em quando tenho esses rompantes, mesmo tarde da noite. E não consigo dormir sem arrumar tudo. Minha mãe dizia (recordo ainda vagamente disso) que puxei esse lado freak de meu avô. Eu era pequeno demais para lembrar, mas penso nela toda vez que resolvo faxinar.

Relógios parados no tempo, pares de óculos, um deles com a haste torta, dois passaportes vencidos, Tiger Balm, camisinhas, fita métrica, celulares Nokia com fones e as borrachinhas ressecadas, plaquinha pra bruxismo abandonada e ressecada, creme fotos de alguns eventos que participei, agenda de telefone, uma lâmpada vermelha. Uma lâm-pa-da ver-me-lha. E uma infinidade de coisas que eu nem sabia que estavam ali, e de outras que não serviam para nada.
Não sei por que guardamos tanta coisa. Não sei por que fazemos isso com tudo.
A gente insiste em manter em nossas vidas coisas que não têm mais o menor sentido e com isso não damos espaço para que as novas cheguem e ocupem o lugar.
Não tem lugar. Nos cercamos do velho, do conhecido, do confortável.
Ninguém mexe. Ninguém tasca.
Pra que mexer, pra que ter trabalho. Está tudo tão bom assim. Mesmo que não esteja. A gente se afunda em autopiedade, mágoa e rancor. Esfrega os olhos, toma um café e continua engolindo o de sempre, vivendo uma vida que parou no tempo e no tédio. Fazemos isso com roupas, com amores fracassados, com trabalhos chatos, salários baixos, amigos desleais, com uma agenda de telefone velha. Olhamos para a lâmpada vermelha na gaveta do criado-mudo e deixamos que fique lá.
Está ruim assim, mas esse ruim eu já conheço. Ninguém mexe. Ninguém tasca. Não quero me incomodar com meus velhos incômodos. São incômodos, mas são velhos conhecidos e são meus. Sou feliz assim mesmo!
Mas a gente gosta daquela cebola gigante do Outback, onde janto, agora, uma vez por ano ou quando dá, uma vez por mês.
Cansei de antigos trabalhos guardados em fotos e vídeos, mas estou satisfeito só de reclamar.
Não gosto de gente acomodada. Gente que não que não se esforça para aprender alguma coisa nova, vai no automático. Nesta idade parece que já conheço todo mundo, todo mundo faz de conta que gosta de mim e eu faço de conta que não detesto todo mundo.
Para tudo. Não precisa ser assim. Não quero que seja assim. Incômodo poderia pinicar pra não deixar a gente se acomodar. A gente deveria fazer faxina de trabaho, faxina de redes sociais, faxina de amizades. Ninguém precisa de uma lâmpada vermelha ocupando espaço na gaveta. Ela acabou lá numa noite que eu quis dar um clima de "obscuro" no quarto. Coisa de filme retrô.
A gente muda. Ou é só abstinência de um bom calmante mesmo. Deve ser a maracug(j)ina.
Tem roupas que nunca mais quero usar, pessoas que tenho vergonha até de lembrar, amizades que eu trocaria por um saco de pipoca, trabalhos que parecem uma linha de produção japonesa de tão chatos. Uma lâmpada vermelha pode ser a luz que falte pra mostrar quando está tudo errado e que é hora de varrer toda a sujeira de debaixo do tapete para fora da porta e para longe da nossa vida. 

Felicidade!

"A felicidade vive atrás de mim, eu que não sou louco deixo ela vir..."

Pedro !

Pai, Há muitos anos que não caibo mais no seu colo. Hoje meu peso já é demais para você me carregar nos seus ombros. E meus anos já não permitem certos mimos de antigamente.
Mas me flagro, às vezes, desejando que você ainda pudesse administrar minha vida, escolhendo os caminhos mais seguros para eu caminhar.

Caminhada essa, livre de todo medo, por saber que você me observava a cada passo, tentando impedir meus tombos e tropeços.
Os anos passaram. E a vida não perdoa atrasos.
A cada dia, por mais que nenhum de nós tivesse pedido, menos controle você passou a ter sobre a minha vida. Não pôde escolher meus empregos como escolhia minhas escolas. Não pôde vetar aquela última dose de vodka como vetava o chocolate antes do almoço. Não pôde me ajudar com aquela baliza na vaga pequena como me ajudava com os pedais da bicicleta. Não pôde evitar a queda do meu celular na privada como evitou vasos quebrados por causa da bola dentro de casa.
E tudo aquilo que você fazia, e que um dia me pareceu infernal: horários estipulados para voltar para casa na noite de sábado, olhares tortos para amigos que não te pareciam boa coisa, reclamações por tempo demais no telefone, controle do dinheiro que eu tentava gastar, hoje faria todo sentido. Seria tão bom se hoje em dia você pudesse me garantir mais horas de sono, amigos mais confiáveis, uma conta de celular mais barata ou uma fatura de cartão de crédito um pouco menos imbecil…
Mas agora é comigo, pai.
E seria bom voltar ao tempo em que você me parecia imortal. Tempo em que era você quem se preocupava com a minha saúde e não eu com a sua. Tempo em que você tentava evitar meu resfriado ou ficava preocupado com meus 39 graus de febre. Mas hoje sou eu que cobro seus exames de sangue, seus exercícios físicos e tento te fazer ver que amendoim, álcool e carne vermelha não garantem uma velhice boa a ninguém.
Pois é, pai. No fundo, todo mundo já sabia que ia ser assim. Mas às vezes essa síndrome de Peter Pan nos invade e a vontade de ficar debaixo de suas asas é quase irresistível.
Mas a vida chama.
Então me levanto, lavo o rosto, vou trabalhar. Porque você me levou no colo, me carregou nos ombros, mas também me ensinou a caminhar com minhas próprias pernas. E se hoje estou na estrada, trilhando caminhos bonitos, você bem sabe que isso é obra sua.
E sabe, pai? Nesse domingo posso te dar um presente. Provavelmente não será grande coisa. Não é aquele super carro com o qual você ainda sonha, mas é fruto do meu trabalho. Fruto do que só existe por sua causa. Pela educação que você me deu, pelas notas das quais você reclamou na escola, pelas festas que você vetou em vésperas de prova.
E eu vou te olhar durante o almoço. Não com o encantamento que tinha aos 6 anos… Porque aos 6 anos era aquele amor cego das crianças. Já hoje, tenho esse olhar cirúrgico, avalio suas atitudes, aponto seus erros, reclamo dos seus defeitos. A verdade, pai, é que eu não te amo como antigamente. A verdade é que te amo ainda mais.
Te amo mais porque te vejo de verdade, com tudo de bom e de ruim, consciente de que você é um ser falho, como todos os outros, mas que, mesmo assim, consegue se manter como meu porto seguro, meu norte, aquele que me construiu, me guiou e ainda me guia, me acode nas quedas que não pode evitar, me ama com todos meus defeitos e é quem dá vida à ideia de “amor incondicional”.
É, pai, hoje você já não é tudo aquilo que foi para mim um dia.
Porque agora você é tudo aquilo que é para mim hoje. E hoje é amor dobrado, é amor firme e deliberado, desse filho, adulto e crítico, com um sentimento cada vez mais consolidado.